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‘Édipo’ sem complexo

Direto ao ponto: a primeira sensação após ter assistido ao espetáculo “Édipo-Rei”, da Companhia do Chapitô, de Lisboa, Portugal, no teatro da Caixa Cultural, em Brasília (DF), na noite de 19 de setembro, foi a mesma depois da derrota da Seleção brasileira por 7 a 1 pela da Alemanha, no dia 8 de julho. No caso da acachapante derrota durante a Copa do Mundo, uma das conclusões foi a de que se pensava que havia futebol de ponta no Brasil. A humilhação mostrou que não. Mostrou, sim, que está havendo algo muito além disso fora do País e que este, de certa forma, perdeu o bonde em algum lugar do passado recente. (Dunga, agora, tenta recuperar o estrago; mas essa é outra história).

No caso do espetáculo português, foi mais ou menos parecido. O Brasil está repleto de brilhantes exemplos no teatro (e nem é preciso citá-los). Ocorre que a montagem do clássico dos clássicos da tragédia grega, de Sófocles, pela Chapitô mostrou que existe teatro de muito melhor qualidade sendo feito do outro lado do Atlântico. Claro, há estilos e estilos. Só que, de repente, depois de ter visto o espetáculo lisboeta, a impressão que fica é de que muito do que já se viu no Brasil tornou-se… convencional.

Em primeiro lugar, chama a atenção a ousadia e a sem-cerimônia com que o texto foi completamente remexido (é esta a expressão exata). Ao ponto de transformar o herói trágico por excelência em um ser ridiculamente cômico.

Dois atores – Jorge Cruz e Tiago Viegas – e uma atriz – Marta Cerqueira – revezam-se nos inúmeros personagens do texto original. Mas cabe a Tiago interpretar Édipo, no que resultou em uma escolha muito acertada. Mesmo confessando que nunca pensou a sério nessa linha de interpretação, o seu rosto é o de um clown perfeito.

No palco, os três têm uma sintonia arrasadora, e fazem literalmente de tudo. Não é para menos, haja vista o tour de force a que se propõem ao condensar em pouco mais de 50 minutos um texto que, se fosse encenado sem cortes, com certeza demoraria mais de três horas. A agilidade com que passam de um personagem a outro, de um ambiente a outro, de um tempo a outro é avassaladora. E aí está o nó górdio da diferenciação: a história é contada/dramatizada com uma agilidade rara, em que o poder de síntese é a tônica. Texto e rubricas se amalgamam a serviço de uma encenação que transcorre como cachoeira: com força, rapidez e beleza.

Não à toa, a montagem optou por uma concepção de iluminação em que há somente um quadrado de luz geral, que não é alterado em momento algum, e por não incluir sonoplastia. Se no início do espetáculo isso pode causar estranhamento, à medida que ele avança percebe-se que simplesmente a sonoplastia é desnecessária. O figurino, como não poderia deixar de ser, é up to date: calça e camiseta para os dois atores; calça jeans, camiseta e um casaquinho para a atriz; sapatos para eles, botas de cano curto para ela.

A ação da peça acontece por meio da gestualidade, do jogo de olhares, das marcações de cena, da mudança de personagens e das diferentes entonações de voz e de interpretação. São hilárias as cenas do nascimento de Édipo; da ventania no topo da montanha; da morte de Laio; da ambientação da viagem de Édipo a cavalo para Corinto e do esforço do Mensageiro (Jorge) em alcançá-lo; das performances do monstro do Oráculo e da Esfinge, por Marta e Jorge; e do impressionante contorcionismo de Marta (bailarina de formação) que ela emprega na personagem da Pastora – e de calça jeans! As sacadas do texto, o timing perfeito das falas, os cacos colocados nos momentos certos e as ambientações das inúmeras cenas fazem do espetáculo um momento dignamente prazeroso das artes cênicas. Com o requinte de a proposta de montagem centrar-se no trabalho de ator. Ponto com louvor para o diretor, o inglês John Mowat, que soube aplicar a mais pura técnica no trio de joias raras que tem nas mãos. O mais impressionante é saber que todo o processo de montagem durou um mês e meio!

Uma característica do teatro contemporâneo chama a atenção no espetáculo: o hibridismo de linguagens. “Édipo-Rei” apropriou-se da gramática cinematográfica, o que resultou em um espetáculo de alta voltagem imagética, com momentos de movimentos de câmera, enquadramentos e flashes da mítica pantomima chapliniana. Além disso, muito provavelmente trata-se da montagem mais carregada de elipses a que este crítico já assistiu.

Se, no início do espetáculo, há o risco latente de a coisa descambar para um besteirol inconsequente, a sua ação solidifica-se e, mesmo acontecendo de forma muito rápida e na voz do português de Portugal, entende-se tudo e não se perde nada. Surge, então, a epifania inescapável: todo o conjunto da montagem (principalmente a escolha dos cortes no texto original) coloca um pé no chamado “teatro de tese”, cujo enredo encontra-se quase sempre no registro do “pós-conflito”. No caso da montagem portuguesa, isso é explícito, uma vez que partiu de um texto universal desde o seu nascedouro – impulsionado, desde o final do século 19, por sua apropriação pela Psicanálise de Sigmund Freud, com o proverbial paradigma do “Complexo de Édipo”. Foi o ensaísta e semiólogo italiano Umberto Eco que disse, em Seis Passeios pelos Bosques da Ficção, que alguns romances, dada a sua complexidade, necessitam de um “leitor de segundo nível”. No caso da proposta do espetáculo português, é justo dizer que ele também precisaria de um “espectador de segundo nível”, que presumidamente chegasse ao teatro com o conhecimento prévio do texto clássico de Sófocles. Pode-se argumentar que, em plena segunda década do século 21, é quase impossível alguém ainda não saber do que se trata. O fato é que o espetáculo é tão bom, tão eficaz em suas opções, que essa preocupação praticamente inexiste. Pelo contrário: quando ele termina, a vontade é de ir correndo ler a peça original.

Ao final, conclui-se que “Édipo-Rei” toca no universal ao propor o registro cômico, mas que atinge também o drama e, claro, a tragédia, notadamente na cena da descoberta de Jocasta (Marta) de que se casou com o próprio filho. As imagens finais, da morte de Jocasta e do cegamento de Édipo, mesmo sendo feitas de forma engraçada, são pungentes. Eis a epifania da tragicomédia humana. Eis o teatro em sua forma mais sublime.

Antes de Brasília, a montagem de “Édipo-Rei” passou pelo Rio de Janeiro, Fortaleza e São Paulo. Daqui, segue, novamente, para o Rio e, depois, para Curitiba e São José do Rio Preto (SP).

*Helcio Kovaleski é ator, diretor, crítico de teatro e já fez trabalhos como dramaturgo e dramaturgista. Natural de Ponta Grossa (PR), atualmente mora em Brasília (DF).

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“Édipo-Rei”

Companhia Chapitô, de Lisboa, Portugal

Duração: 50 minutos

Local: Teatro da Caixa Cultural (SBS, quadra 4, lotes ¾, Asa Sul, anexo à matriz da Caixa, Brasília (DF)

Temporada: de 12 a 28 de setembro de 2014

(Fonte: http://www20.caixa.gov.br/Paginas/Releases/Noticia.aspx?releID=353)

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