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Grupo de recuperação de homens agressores reduz violência doméstica

Quatro minutos é o tempo médio entre duas agressões a mulheres no Brasil, que, somente em 2018, registrou 145 mil casos dessa natureza. Os dados são do Sistema de Informação de Agravos de Notificações (Sinan), divulgados pelo jornal Folha de S. Paulo, e não incluem os casos em que as vítimas foram fatais. Números levantados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), também divulgados pela Folha, indicam que 4.396 mulheres foram assassinadas no país – o que coloca o Brasil em 5º lugar no ranking mundial das nações onde mais ocorrem feminicídios.

A violência contra a mulher tem características próprias: na maioria das vezes, a vítima dorme com o inimigo. O agressor, quase sempre, é pessoa próxima, especialmente cônjuge ou ex-cônjuge. Apenas 10% dos agressores são pessoas estranhas à família. O ciclo da agressão se perpetua por conta dos valores machistas da sociedade. Embora a legislação atual proclame a igualdade entre os gêneros na família, perpetua-se culturalmente a ideia de que o homem é a cabeça da família, com poder sobre a mulher. Numa cultura machista, o homem sente-se “dono” da mulher, com poder inclusive para agredi-la.

Como mudar essa situação? Além das providências legais possíveis, com a responsabilização penal do agressor e as consequências que dela decorrem, muitas vezes traumáticas, uma ideia diferente, surgida nos Estados Unidos na década de 1970, tem aos poucos ganhado espaço: a busca pela recuperação do agressor. No Brasil, não há um projeto nacional dirigido por alguma instituição específica, mas diversas iniciativas esparsas que têm comprovado a eficácia da ideia.

Recuperação 
No âmbito do Ministério Público do Paraná, várias comarcas têm buscado criar um programa de recuperação de homens agressores, com sucesso nas experiências empreendidas. Levantamento do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos, órgão do MPPR, aponta para a existência de ao menos 25 iniciativas que contam com a participação de Promotorias de Justiça.

Em Cianorte, por exemplo, o Grupo de Orientação e Sensibilização aos Autores da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher iniciou suas atividades em setembro de 2016. Os autores da violência doméstica e familiar, desde então, são encaminhados por meio de medida judicial, sendo obrigatória a sua participação. No total, desde o início do projeto até 2019, foram realizados 24 grupos com a participação de 598 homens, ocorrendo apenas quatro casos de reincidência.

Conforme explica a promotora de Justiça Elaine Lopo Rodrigues, uma das responsáveis pelo projeto na comarca, cada grupo, que conta com em torno de 20 a 30 participantes, acompanha quatro encontros, realizados no Tribunal do Júri (Fórum de Cianorte). A condução é feita por profissionais de diferentes áreas, como Direito, Psicologia e Serviço Social. Cada encontro trata de assuntos específicos: 1) raízes históricas da violência contra a mulher, tipificação da violência doméstica e violação dos direitos humanos; 2) transtornos mentais e o uso de substâncias psicoativas como potencializadores da violência doméstica; 3) desconstrução de estereótipos de gênero e poder de (re)construção de laços saudáveis por meio de formas alternativas de resolução de conflitos; 4) consequências emocionais, psicossociais e morais que acometem às mulheres em situação de violência doméstica e o autor da violência.

Os encontros buscam estimular a reflexão em torno de atos, valores e ideias presentes no contexto da violência de gênero, com foco na violência contra a mulher. Além disso, as análises partem das discussões sobre a identidade masculina atribuída histórica e socialmente, definindo papéis e formas de ser e se comportar. Além dos quatro encontros, caso haja a necessidade de um acompanhamento individualizado do autor da violência doméstica e/ou da família, são realizados encaminhamentos para diferentes instituições.

Trabalho multidisciplinar 
Em Cianorte, o projeto é coordenado em conjunto pelo Judiciário e pelo MPPR. Os bons resultados da experiência levaram à realização, na cidade do Noroeste paranaense, do I Encontro Estadual de Atendimento aos Autores de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com participação de profissionais de psicologia e assistência social, secretários municipais, estagiários do MPPR, professores e outros participantes de todo o estado. “É a união dos esforços e a constante atualização dos profissionais da equipe multidisciplinar, que trabalham voluntariamente, advindos de vários órgãos públicos, que possibilita o excelente resultado do grupo. Sem esses profissionais voluntários, seria impossível a realização e o sucesso alcançado por esse projeto” comenta a promotora de Justiça Elaine Rodrigues.

Em Campina da Lagoa, outra comarca quem mantém um projeto semelhante, o trabalho começou no início de 2018. O promotor de Justiça Thimotie de Aragon Heemann conta que já foram atendidos quase 70 homens agressores, sem qualquer reincidência. Cada um dos três municípios da comarca (além da sede, Altamira do Paraná e Nova Cantu) conta com um núcleo do projeto, chamado de Conviver – Grupo de Reflexão para Autores de Violência Doméstica contra a Mulher. O projeto é feito em convênio com a Secretaria Municipal de Assistência Social. Em outras comarcas, há convênios também com faculdades ou com o próprio Judiciário – o trabalho caracteriza-se por ser multidisciplinar e envolver diferentes instituições.

O promotor explica o funcionamento dos grupos: “Os temas tratados geralmente são baseados nos princípios da justiça restaurativa. Os agressores são convidados a enxergar o padrão de violência internalizado, o machismo, como a sociedade trata a mulher, e romper esse padrão. A forma de trabalho pode variar. Normalmente, as reuniões são conduzidas por assistente social ou psicólogo, com eventuais palestras de promotores, delegados e médicos, entre outros profissionais”.

A adesão dos agressores ao projeto não é voluntária, mas determinada via Judiciário, que pode encaminhá-los em três diferentes situações: quando é expedida alguma medida protetiva para a vítima (o juiz então determina que o agressor se apresente ao projeto), quando o homem é condenado a uma pena no regime aberto (constituindo-se o comparecimento às reuniões do grupo como parte da pena) e quando há suspensão condicional da pena. O mais comum é o encaminhamento junto com a medida protetiva, logo após a violência ocorrida.

Perfil do agressor 
Thimotie Heemann comenta que “o homem autor de violência doméstica não é o criminoso típico, filiado a uma organização criminosa, com extensa ficha criminal. Em geral, é pagador de impostos, não destoa dos membros da sua comunidade e não mostra violência na vida cotidiana, apenas em casa, contra a mulher”. O objetivo de inseri-lo nos grupos de reflexão é diminuir os índices de violência doméstica, inibir a reincidência e atuar na prevenção. E todos os dados indicam que essa meta é atingida – em termos nacionais, a reincidência gira em torno de 20%. Ou seja, atacar o problema na sua raiz tem sido uma estratégia altamente eficaz.

E o que dizem os agressores que participam dos grupos? Os números já falam por si, e depoimentos dos participantes confirmam. Um agricultor de 34 anos, que participou das reuniões em Campina da Lagoa, é um exemplo. Ele não esconde seu entusiasmo com o projeto: “Foi uma nova vida, um conhecimento fora do comum. Todo mundo saiu muito satisfeito. É uma palestra que a gente leva para todo lugar onde vamos, em casa, no serviço… Uma lição de vida. Isso vai ajudar muitas pessoas, só temos a ganhar com esse projeto”. Ele foi denunciado pela esposa por ameaça, e sua passagem pelo grupo de reflexão, conta ele, mudou o relacionamento do casal. “Antes não tinha respeito, hoje tem. Antes era agressão verbal, hoje não. Temos mais paciência um com o outro. Revemos nossas atitudes para isso não acontecer de novo. Nossa relação é fora do normal, tanto para mim quanto para ela, o relacionamento mudou tudo, o respeito, tudo”, conta.

Nos grupos de Campina da Lagoa, relata Thimotie Heemann, os trabalhos geralmente se iniciam com uma entrevista pessoal com cada um dos agressores, seguida por discussões acerca dos conceitos da violência doméstica e familiar, a Lei Maria da Penha e seus desdobramentos, a diferença de gêneros. A partir de reflexões mais profundas envolvendo o resgate da história de vida de cada participante, busca-se pontuar como a violência foi inserida na vida de cada um e discutir os fatos vivenciados, procurando-se apontar formas de enfrentamento desses conflitos. Os agressores são estimulados a identificar as situações nas quais sentem raiva e a refletir sobre o que fazer para não perder o controle. Para o agricultor participante, o sistema funciona muito bem: “O que mais me tocou foi a dedicação deles pra explicar pra nós o sentido daquilo, os vídeos que passaram. A forma deles falarem conosco foi muito boa. Tocava no fundo da gente, foi maravilhoso. Eu aproveitei tudo que escutei e vi. Hoje tem muitos casos de violência no Brasil. Tem muito homem machista que acha que é dono da mulher. Isso tem que parar.”

Depoimento 
Uma cuidadora de idosos, esposa de outro homem encaminhado ao projeto em Campina da Lagoa, também confirma a eficácia do trabalho: “Meu marido fez o curso, foi muito bom. Ele ficou mais tranquilo, mais calmo, melhorou bastante. Antes, agredia com palavras. Ele diz que foi bom, que gostou, que depois do curso as pessoas entendem melhor as coisas da vida. Nosso relacionamento melhorou”.

Outra vantagem dos projetos é que não exigem grande investimento. Não há necessidade de contratação de pessoal, pois os profissionais envolvidos são servidores do Judiciário, ou da Secretaria de Assistência Social do Município, ou ainda das faculdades parceiras. Como as dezenas de grupos espalhados pelo Paraná têm sistemas de funcionamento diferente, envolvendo instituições variadas, não há, ainda, dados centralizados sobre o número exato de pessoas atendidas. Entretanto, todos os grupos que contam com a participação do MPPR vem apresentando resultados semelhantes, com índices de reincidência muito baixos, indicando que a estratégica de trabalhar com a recuperação dos agressores é altamente eficaz.

JUSTIÇA RESTAURATIVA

A ideia dos grupos reflexivos com homens agressores é baseada na chamada Justiça Restaurativa, uma nova maneira de abordar a justiça penal. Ela visa à reparação dos danos causados às pessoas e relacionamentos, em vez de simplesmente punir os transgressores. Trata-se de um processo no qual as pessoas afetadas mais diretamente por um delito são chamadas para determinar qual a melhor forma de reparar o dano. De acordo com a Resolução 2002/12, do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, processos restaurativos são aqueles nos quais vítima e ofensor, bem como outras pessoas afetadas pelo conflito em questão, participam ativamente na resolução das questões oriundas desse conflito, geralmente com a ajuda de um facilitador.

Enquanto as práticas tradicionais da justiça enfatizam a apuração de culpados e a imposição de punições, legitimando uma espécie de vingança pública, a justiça restaurativa considera os danos, os responsáveis e os prejudicados pela infração. Valoriza a autonomia dos envolvidos e o diálogo entre eles, criando espaços protegidos para que todos falem (transgressor, vítima, parentes e pessoas da comunidade) em busca de opções de responsabilização, reconhecimento e reparação das consequências.

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