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A jornada do herói cultural

 

Arquivo DC

O Centro de Cultura Cidade de Ponta Grossa foi interditado devido a problemas no telhado

 

 

Era uma vez um residente à rua Dr. Colares, 436. Vivia calmo e plácido, observando os campos, ainda singelos em construção, do alto de suas mais de vinte janelas. O tempo também era plácido, nenhuma sofreguidão a perturbar o ritmo cíclico e estável do desenrolar da vida. Transcorrendo como o novelo da tecelã que urde, sistematicamente, em fios, pontos e tramas. Sua origem foi como a residência do Sr. Amando Cypriano da Cunha, no início dos anos de 1900. Abrigou, depois, o Ginásio Regente Feijó, para posteriormente sediar a Escola Normal de Ponta Grossa e, a partir de 1950 receber o Instituto de Educação César Pietro Martinez. Até então nosso futuro herói já estava acostumado a receber atribuições, mas nada que desafiasse suas estruturas. Num belo dia de 1986, a imponente construção foi designada, através da lei municipal nº 3.929, como o Centro de Cultura Cidade de Ponta Grossa.

– Como assim? pensou em carrancas intrigadas.

– Ser referência em cultura, o espaço que congrega, reúne e fortalece iniciativas?

Mais do que isto, ser a morada e o próprio ventre de onde espargem as iniciativas culturais mais expressivas. Não seria demais? A carga de responsabilidade parecia imensa para tão pacatas e cautelosas paredes. Jamais, em outros tempos, ansiosas em erguer, para si tal título. É natural titubear e relutar em aceitar. Mas a lei não deixava dúvidas, uma publicação selava a sina do novo herói. Valorizando o dia do município, em 15 de setembro de 1988, ocorreu a inauguração oficial do espaço. Daquele dia em diante, o destino da suntuosa construção estaria vinculado aos desígnios culturais da cidade, um templo, um cavaleiro solitário a velar diuturnamente pela cultura. Adentrando o umbral cultural, a edificação sofreu primorosa restauração que a remeteu novamente às características arquitetônicas da época da construção. Seu corpo passara pela iniciação, sagrando-o guardião da cultura.

Ao longo da jornada, nosso prédio herói encontra aliados, inimigos, passa por desafios e embates. De seus espaços são erigidos o Auditório Avelino Vieira e a Galeria João Pilarski. Quantas exposições, recitais musicais, apresentações teatrais, eventos literários, todos sob a salvaguarda do prédio, que dos olhos de suas carrancas, espanta os mal-intencionados, algozes da cultura, vilões traiçoeiros, que não redimem suas culpas em atos vis. O reconhecimento se fez presente quando, em 2002, foi tombado pelo Patrimônio Cultural de Ponta Grossa. Generoso em virtudes perfiladas em nome da cultura, passou a abrigar, desde 2007, a Pinacoteca Cidade de Ponta Grossa.

Passados quase trinta anos da publicação que sagrou seu caminho cultural, nosso herói já deu muitas provas de seu valor. No entanto, as constantes faltas de recursos e de políticas culturais fazem abarcar sobre suas ancas e cabeça carga cada vez mais difícil de ser suportada. Ventos fortes, tempestades e chuvas de granizo atacam, de forma implacável, intempéries verdugas, aplicando sua incúria às valentes edificações.

O caminho seria apenas de glória, de reconhecimento pelos nobres serviços prestados. Em vez disso, inimigos silenciosos se revelam infiltrados nas estruturas do telhado do prédio. Forças ocultas, o lado negro da força em ataque mortal ao ser majestoso. Venceria ele esta nova provação? Algum superpoder a ser despertado? Quem tanto nos representou contaria com nosso apoio e dedicação?

O herói passa por grave provação, portas fechadas diante dos riscos provocados pelo estado de conservação do teto, violentamente atacado por infiltrações e cupins. Quem sempre zelou pela cultura, agora silencia, abatido em necessidade de cura. Nosso Centro de Cultura está doente. Um mal lhe acomete e ataca. Em nós, a certeza de que também nossas células se encontram doentes. Não foram capazes de produzir vontade férrea, hemoglobina cultural, que fizesse frente aos perigos que o nosso herói sofre sozinho.

Joseph Campbell, um dos maiores mitologistas da humanidade, apresenta os passos da “Jornada do Herói”, buscando as semelhanças que nutrem o emocional humano no caminho traçado pelos que executam atos heroicos. Na força dos grandes feitos, ouso tratar nosso Centro de Cultura Cidade de Ponta Grossa como um herói a abarcar nossas nuances culturais. O frágil momento de sua depuração pertence a todos nós, em ato real.

 

*Renata é escritora, integrante da Academia de Letras dos Campos Gerais e da Academia Ponta-grossense de Letras e Artes.

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