em

Adotei um cachorro

Um amigo trouxe outro dia aqui. Deixou ração, uma coleira reserva, um brinquedo feito de couro seco, corrente e recomendações. Disse que havia aparecido na rua da sua casa e que, junto com os vizinhos, estava procurando lar para o animal. Depois de uma estadia de uma só noite na casa de pais adotivos impacientes, o cachorro viu-se sem teto novamente.

– Eu até que ficaria com ele, mas lá em casa já não tem mais espaço, não se sinta pressionado, é só uma proposta – arriscou meu amigo. Aceitei, quase não me reconhecendo.

No primeiro dia a coisa foi meio estranha. Eu sentando na soleira da porta, ele como esfinge de queixo encostado no chão olhando para mim. – E aí, tio, vai ficar parado com essa cara? Nunca ficou sozinho com um cachorro?

Claro que eu já tive vários cachorros na minha vida. Mas nunca fui o responsável por nenhum deles e lembrando aqui, acho que cabem nos dedos das mãos às vezes que ficamos a sós. Droga de bicho esperto, pensei. Arrumei um pote vazio de sorvete para a ração e uma panela para a água, estendi uma colcha velha king size na garagem e voilà! Estava instalado o garoto. Travesso e experiente, segundo meu amigo, tinha a vivência das ruas.

Naquela noite, eu já teria a primeira grande responsabilidade. Precisava de um nome para ele. Obviamente que não poderia ser qualquer alcunha, precisava demonstrar toda minha cultura, precisava ter referência, não à cor caramelo dele, nem às suas orelhas enormes e pontudas, muito menos às pernas curtas. Tinha que ser o nome de um grande personagem da literatura ou da música, uma prova de erudição do seu dono. Tarefa ingrata.

Não me pareceu de bom tom chama-lo de Brás Cubas. Joyce, além de arrogante, poderia suscitar uma ou outra discussão sobre Ulysses, aí já viu. Macunaíma também não, li que nome de “pet” tem que ser curto. Parti para a música. Ozzy? Não. Iggy? Olha aí, pode ser.

Mas a minha vida é um sem número de escolhas passivas, movida a não-escolhas e não seria agora que mudaria. A dúvida ainda se debatia em minha mente noite adentro, quando ao procurar reencher um copo de água me deparo com um imã antigo com a cara do Woody Allen na minha geladeira. Seria correto dar o nome do polêmico e quase cancelado diretor para o bichinho? Seria. Também não me importou ser o apelido antigo de um velho amigo. Talvez ninguém mais o chame assim hoje, ele entenderá.

Udi amanheceu seu primeiro dia aqui em casa deitado em frente à porta, e ao lado dele o pote de sorvete vazio. Garoto exigente. Adentramos a semana com altos e baixos na nossa recém-criada amizade. Tentativas frustradas de banho nele e efetivadas em mim. Choros e uivos até nos momentos em que eu o deixava sozinho para ir ao mercado aqui na esquina. A cada saída do carro da garagem foi preciso prendê-lo na corrente, a simples visão paradisíaca da rua o deixava maluco. Mas foi e ainda é necessário, você sabe, malandro não para, malandro dá um tempo.

Até que dias atrás recebi uma visita. Logo de cara percebi que Udi estava diferente. Risonho, latido grosso e olhos brilhantes. A moça e eu nos encostamos na sacada e apresentei o faceiro a ela. Estava soltinho. Gemia e mordiscava os sapatos e a barra da calça dela. Eu pedia que parrasse e nada, mais que isso, virou-me as costas, deu de rabo para mim e só tinha focinho para ela. Mal nos deixava conversar. Foi assim durante todo o tempo que ficamos bebendo fora da casa. Certa hora, ela foi para a cozinha preparar um cigarro e Udi foi junto, continuei na sacada terminando o meu. Enquanto fumava, ouvia risos dela e o respirar ofegante dele cada vez mais rápido. Apaguei a bituca e entrei ver o que acontecia.

Ela estava sentada na cadeira e, descalça, passava os pés nele, que de olhos fechados, gemia descaradamente. Cachorro! Pensei. Fiquei ao lado da cena, sobrando, até que ela terminou o artesanato e foi para sala. Udi, sedento, foi lá para fora saciar-se. Fingi um vento frio em pleno janeiro e fechei a porta. Aqui não garoto. Na madrugada achei ter ouvido latidos sob a janela do quarto, mas pensei não ser nada e adormeci. Pela manhã, enquanto abria o portão da garagem para ela ir embora, achei ter visto Udi abrir e fechar um olho, mas pode ter sido coisa da minha cabeça, culpa talvez.

Nem eu nem ele tocamos no assunto desde então, hoje acredito que estamos bem, já que nesse momento, enquanto escrevo esta crônica e tomo café, Udi dorme o sono dos justos sobre meus pés.

Participe do grupo e receba as principais notícias da sua região na palma da sua mão.

Entre no grupo Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.