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Antagonismo que faz tombar

Cássio Murilo

A foto do antigo Cine Império (demolido), causou nostalgia nas redes sociais na última semana

Caminhava pelas ruas da cidade e observava construções que vinham abaixo. Guindastes, máquinas modernas em hidráulica pesada, versão sofisticada das quase românticas bolas de demolição, edificações tombadas. Um pouco adiante, em arabescos sinuosos a beleza preservada, memória recém-restaurada, valor histórico, patrimônio tombado. Quanto antagonismo, o mesmo verbo que põe abaixo é aquele que mantém de pé, em pé e a postos, em pé e à ordem, entre colunas aguardando ordens.

No antigo xamanismo, cultura ancestral, através da qual o ser humano reconhecia e lidava, habilmente, tanto com o mundo físico quanto com os mundos sutis, o xamã possuía quatro arquétipos: o guerreiro, o mestre, o curandeiro e o visionário. E quem não precisaria destas habilidades? Aprender, com o guerreiro, a se posicionar diante dos oponentes e dos desafios; saber, como o mestre, ensinar e orientar os que iniciam a caminhada; remediar e curar seus próprios males, como faz o curandeiro; e desenvolver, como o visionário, visão acurada para enxergar em meio ao nubiloso o que, normalmente, ninguém mais vê.

Tal qual o guerreiro que se posiciona e apenas mostra suas armas, com base na coragem, sem necessariamente precisar lutar, assim se posicionam nossos prédios tombados. São guerreiros que se permitem visualizar e vislumbrar em glória ao passado. Também ensinam escola viva, aos que neles respiram e as memórias incitam. Seriam capazes de curar a si? Creio que sim, como fortalezas na arquitetura e na história encerram poder inerente que permite curar até os que neles adentram, curando a outros curam em si em dádiva altruística. E, sem dúvida, são visionários. Ao contemplá-los, a porção atemporal das formas e dos princípios construtivos permite desventrar um porvir que vem. Como um xamã, lutam contra forças físicas e contra forças astrais, vertentes ocultas que insistem em demolir. A demolição começa velada, nos mais tênues pensamentos e discretos murmúrios que sussurram e confabulam. Os motivos, sempre os mesmos, aspirações financeiras e as oportunidades de negócios. Pensam os algozes: Para que prédios velhos em vez de novas e lucrativas edificações? Alguém paga o preço da memória perdida? Temo que sejamos todos nós como contrapartida. Quem acalenta a história transmitida em construção exaurida? O passado, o presente e o futuro vislumbrados e projetados em visão atual. O moderno e o antigo que, juntos, conversam, compactuam, conservam e preparam o futuro que vem. Imagem que deveríamos encontrar em reincidência pelas ruas, praças e avenidas na cidade.

Mas, os tempos são outros, as culturas ancestrais ficaram como conserva dos idos tempos. Nossa época requer consciência moderna e ética. Assumem agora, nossos prédios tombados, uma alma que ainda se posiciona respeitando altivamente até o livre arbítrio de quem decreta pôr abaixo. Prédios tombados? Quais? Os destruídos ou os que foram a tombo? Ambos, cada um a seu modo, carregam altivez na memória ou na glória física.

 

Renata é escritora, integrante da Academia de Letras dos Campos Gerais e da Academia Ponta-grossense de Letras e Artes

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