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As bruxas da noite

A bruxa é a mulher intuitiva, aquela sensível ao mundo que a cerca e aos próprios sentidos, de percepção aguçada, sentimentos e sentidos aflorados. Em várias culturas e arquétipos, a bruxa não é uma mulher má, longe de ser um atributo para o qual se pondere uma qualificação moral, mas sim que exprime a atitude sensível com o mundo que a rodeia. Na Idade Média, no afã da insanidade religiosa, antes disso, por conveniência política, muitas mulheres foram atiradas à fogueira, rotuladas do que conhecemos, hoje, por sensibilidade aguçada e não de atuação deliberada a favor do mal. Pejorativamente o termo ficou, desenterrado vez em quando e utilizado a fim de denegrir ou atingir alguém.

 

Lançada em 2018 pela Adriano Salani Editore, na Itália, e em 2019, no Brasil, pela Editora Pensamento-Cultrix, a obra “As bruxas da noite”, da escritora e jornalista italiana Ritanna Armeni, traz a história do Regimento Aéreo Feminino Russo que atuou durante a Segunda Guerra Mundial. Com imensa riqueza de detalhes, ao mesmo tempo em que impressiona pelo desconhecimento do público em geral, a história, independente do contexto trágico da guerra, comove pela rudeza dos enfrentamentos e pela grandeza de alma que as protagonistas demonstram.

 

“Irina pega uma coberta e se deita debaixo das asas de um avião. Larissa lhe oferece um pequeno travesseiro. Alguém bordou nele miosótis com linha azul. Coloca-o debaixo da cabeça e adormece no mesmo instante”. Ritanna Armeni.

 

Meninas. O que se observa na narrativa são jovens mulheres, a maioria estudantes ainda solteiras, atendendo ao apelo de convocação para atuação na guerra a favor de seu país. Não julgo, e nem a autora, quanto às razões ou ao posicionamento na guerra, interessa apenas o fato histórico e incomum de um grupo, um regimento inteiro formado exclusivamente por mulheres. Boa parte do sucesso desta iniciativa deve-se ao mito Marina Raskova, uma bela jovem russa, destinada pela família a tornar-se uma cantora lírica que, entretanto, decide estudar química e acaba por ser admitida no Laboratório da Academia da Força Aérea Russa, tornando-se também piloto. Segundo a jornalista, é a Marina quem convence Stalin a autorizar o regimento feminino ante as crescentes demandas da guerra e escassez de homens.

 

“Marina é jovem, é mulher, mas é competente. É que lhe dizem ao final do curso com um esplêndido buquê (…)” Ritanna Armeni.

 

Insisto na riqueza de imagens que um livro é capaz de provocar, despertar e mesmo atiçar. Não é possível aquilatar o valor intangível em construir, a partir da própria identidade, as imagens oferecidas por meio da narrativa, em tempos de poluição visual, de excesso de virtualidade, jogos, filmes a nos infectar com suas cenas preconcebidas e idealizadas. Enquanto permanecia lendo e sorvendo das palavras do texto e construindo absolutamente e por completo as cenas que meu conteúdo pessoal pode abarcar, tanto mais recebia o impulso de compreensão de um mundo diferente, de uma realidade completamente fora da minha vida, entretanto, com a qual infinitas pequenas afinidades encontrei. Magia, loucura, bruxaria (elas são bruxas!)? Não, apenas sintonia com as mesmas qualidades emocionais que nos permeiam.

 

Na trama real, a simplicidade nos comove com gestos simples, contudo carregados de dor no desapego: “O comando ordena que as futuras pilotas cortem os cabelos imediatamente. As belas tranças que trazem nas costas, cruzadas na cabeça ou enroladas na nuca não são adequadas aos gorros militares, à guerra, aos aviões, às batalhas; não se conciliam com suas novas tarefas.” Ritanna Armeni.

 

Os surpreendentes detalhes reais na obra foram possíveis porque a autora teve contato e realizou inúmeras conversas e entrevistas com a última das bruxas ainda viva: Irina Rakobolskaja, que atuou como vice-comandante do regimento e à época do contato com a Ritanna estava com 96 anos, total lucidez e memória invejáveis. Apesar da firmeza nas descrições da Irina, evitando afãs sentimentais, pequenas marcas impregnadas na alma feminina surpreendem: “Gastei 11 rubros em um creme. Para que, afinal? Só para me lembrar de que sou uma mulher…” Ritanna Armeni.

“As bruxas estão acostumadas a voar com os temporais. Sabem muito bem que não há escolha: entre a tempestade e os tanques da Wehrmacht, vence a primeira.” Ritanna Armeni.

 

O espírito de colaboração, mesmo em situações tão extremadas, se fez presente e não somente as pilotos, mas todo o conjunto do regimento, composto ainda por mecânicas e armeiras, atuava de forma sincrônica, colaborativa e extremamente funcional. “À noite, preparavam e revisavam os aviões antes da decolagem e, durante o dia, consertavam as avarias. Podem dormir apenas algumas horas, quando é possível, enroladas em uma coberta perto do aeroplano.” Ritanna Armeni.

Apesar dos rigores extremos da guerra, os atributos e a sensibilidade feminina não se deixaram sucumbir, ao contrário, tornaram-se mais presentes, amparando e fazendo uma contrapartida às rudezas impostas: “Naqueles momentos terríveis em que se sabia que o perigo era grande, quando a tensão era tanta que ninguém conseguia fechar os olhos, nem mesmo nas horas em que isso era possível, todo o regimento bordava.” Ritanna Armeni.

 

O apelido “Bruxas da noite” surgiu atribuído pelos alemães, quando, admirados, descobriram que aqueles aviões Polikarpov que atacavam somente à noite, de modo sutil e disciplinado, eram pilotados exclusivamente por mulheres.

 

Novamente e sempre o exemplo. Dentre elas, uma piloto em especial era o exemplo, Zhenya  tornou-se o símbolo do regimento: “Todas ficavam encantadas com sua indistinta indiferença à fealdade e ao mal; com o amálgama profundo entre competência, disciplina, abnegação e o mundo fantástico das estrelas e dos astros, no qual continuava a viver, com a convivência, no mesmo caráter, de um espírito romântico e poético e um patriotismo férreo.” Ritanna Armeni.

 

“As bruxas viviam à noite, quando subiam em seus aviões e começavam a voar.” Ritanna Armeni.

 

 

 

Autoria: Renata Regos Florisbelo

 

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