em

Cântico centenário

Quanto tempo o vento já soprou? Não sei, tantos sóis já se passaram, erigidos nas manhãs e dormitantes nas noites. Lembro-me de quando os ares eram outros, o céu mais puro, as árvores ainda pequenas. Mulheres usavam vestidos bonitos, portavam elegantes chapéus e abrigavam suas peles alvas com delicadas sombrinhas. O ritmo era dessemelhante, carros puxados por cavalos, muitas crianças brincando nas praças. Quando morria alguém, a despedida era longa, toda a cidade se punha a depositar condolências no túmulo amigo, todos eram conhecidos.

Cheguei muito pequena aqui, mal lembro daqueles dias, talvez noventa, cem anos atrás. Creio que algum documento me acompanhou. Uma certidão de nascimento? Por certo não era este o nome, documento em papel antigo, letras desenhadas e manuscritas, belas como a leveza de quem empunha a pena. A escrita com a pena faz as palavras alçarem voo e planarem sobre o leito impresso. Sei que não vim sozinha, outras me acompanharam e têm a mesma idade. Somos irmãs. Não reconheço todas ao meu lado. Algumas já morreram. Uma irmã menor, que vivia um pouco à frente, foi definhando lentamente. Ninguém sabe o que lhe aconteceu, uma doença, um vírus, quem sabe um fungo raro e mortífero. Foi o bastante para arrebatá-la em seu viço. Morreu, de seus restos nada sobrou. Uma criança ainda olhou com espanto e falou:

– Passarinho foi embora, a bela da praça não vingou.

Agora, algumas imagens começam a aparecer em minhas memórias torvadas. Era uma tarde quente de verão quando os moços de roupas engraçadas nos trouxeram. Chapéus grandes protegiam suas cabeças e nos refrescavam na sombra de suas abas.

Um homem simpático, de pele rude e braços fortes, levara-me em seu colo. Eu me sentia como um bebê em carinhosos cuidados. Recebemos visitas e mais visitas, crianças do colégio, namorados, até mesmo alguns perdidos alcoolizados nas madrugadas longínquas.

Um dia, um casal apareceu, eram tão tenros e jovens quanto as flores que por ali também estavam. Fizeram juras e escreveram seus nomes com desenho de coração. Rasgaram a minha pele grossa nesse ato impulsivo, a primeira tatuagem. Depois, surgiram já de alianças nos dedos. Mais tarde, passaram a circular com um garoto no colo. E, então, veio uma menina, e mais duas.

Quando me dei conta, já eram maduros e ainda passeavam pela praça. Daquela menina moça com o namorado, minha memória guarda lembrança. Há algumas semanas, seu cortejo fúnebre passou por aqui e, pela primeira vez, chorei uma despedida. Será que estou ficando emotiva depois de tantos anos de vida? Impossível ver a partida de quem, por compartilhar comigo, vai embora em sonho colorido. Queria ganhar pernas, braços, tamanha a saudade que impele a correr no encalço do bem querer.

Sinto-me fraca, o peso dos anos azuis tem deixado suas marcas. Já trago no corpo o sinal dos anos. Temo pelo fim. Desejo uma partida digna e também natural. Livrem-me de homens tiranos empunhando motosserras. Não mutilem meu corpo, que ainda é capaz de fazer frente aos ventos e resistir altivo. Não há dor pior que ver tombar a copa frondosa para todos. Só um cotoco, inerte, morto. Livrai-me deste mal.

As árvores nas praças sonham com uma biografia altiva, lançando sombras afáveis aos que a valorizam. Sherlock Holmes Cultura defende a manutenção e a preservação efusiva de nossas árvores.

 

Autora: Renata é escritora, integrante da Academia de Letras dos Campos Gerais e da Academia Ponta-grossense de Letras e Artes.

Participe do grupo e receba as principais notícias da sua região na palma da sua mão.

Entre no grupo Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.