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E o palco virou o sertão de Glauber

Não tanto pela aura mitológica que envolve o filme Deus e o
Diabo na Terra do Sol (1964, Copacabana Filmes, Rio de Janeiro, 110 min.) –
espécie de síntese do Cinema Novo e dirigido pelo ícone maior desse movimento,
o baiano Glauber Rocha –, mas principalmente pela expectativa de como se
colocaria em prática o desafio de transpor um roteiro cinematográfico para o
palco, é que se aguardava com ansiedade a apresentação do espetáculo homônimo
pela Cia. Provisória, do Rio de Janeiro (RJ), na noite de domingo (11), no
auditório A do Cine-Teatro Ópera. E o que se viu, guardadas todas as
proporções, foi uma montagem vigorosa, à altura do roteiro escrito por Glauber.

Adaptado e dirigido por Jefferson Almeida, o espetáculo,
encenado por nove atores (incluindo o diretor) ligados à Universidade Federal
do Rio de Janeiro (Unirio), mostra toda a força do argumento criado pelo
próprio Glauber. A história narra a saga do vaqueiro Manuel e sua mulher, Rosa,
que vivem uma rotina de comida pouca, trabalho pesado e absoluta falta de
facilidades. Em um gesto heroico/anti-heroico, tentando manter o que lhe
resta de dignidade, Manoel torna-se o assassino do Coronel Morais, seu patrão,
explorador e carrasco. Perseguido pelos homens de Morais (que já havia matado sua
mãe), Manuel une-se a Rosa em um calvário em busca da salvação espiritual em
detrimento de um corpo que sofre desde sempre. A partir daí, o casal encontra
pelo caminho o beato Sebastião (inspirado em Antonio Conselheiro) e Antônio das
Mortes, vil matador de aluguel que faz do seu ofício um orgulho. Este, cumprindo
seu dever, comete um massacre de beatos, em Monte Santo (BA), deixando vivos
apenas Manuel e Rosa. Nesse ponto da história surge a antológica figura de
Corisco, o ‘Diabo Louro’, uma espécie de herói dos pobres, que marchava com
sua esposa e seguidores em busca do ‘Deus Negro’, Sebastião. Ao saber do
assassinato do beato, Corisco promete vingança e sai à caça de Antônio. Em uma
batalha épica, Antonio das Mortes mata Corisco e fere sua mulher, Dadá.
Assegurado pela promessa do Santo de que um dia o sertão viraria mar e o mar,
sertão, Manuel corre até encontrar o mar. E no mar, a esperança de, ainda,
viver.

Essa é a sinopse do filme que Jefferson, com a colaboração
de Tamires Nascimento (que também está no elenco), teve a sabedoria de manter
intacto.

Não há muito o que falar do espetáculo. Forte, pulsante, que
inicia meio ralentando – provavelmente com certo respeito a Glauber –, mas que,
depois, aos poucos, arrebata a plateia. Jefferson optou por fazer uma montagem
bastante marcada com luz, sombras, músicas (todas do filme, com letras de
Glauber e melodias de Sérgio Ricardo) e danças típicas do Nordeste (como, por
exemplo, maculelê, coco e frevo).

Só um senão, apontado pelo jurado Gonzaga Pedrosa. Há que se
‘limpar’ a transição de uma cena para outra. A direção de Jefferson, se por um
lado se mostra extremamente competente em praticamente tudo, peca por pequenos
detalhes de acabamento de uma cena para outra.

Uma sugestão. Já que se trata da adaptação de um roteiro de
Glauber Rocha, que sabidamente usava e abusava da ‘teoria da montagem’,
formulada pelo cineasta russo Sergei Eisenstein, por que não estudar essa
técnica para o espetáculo, principalmente no que diz respeito ao ‘poder de
sugestão’ que o cinema propõe?

No mais, é um alento assistir a um espetáculo dessa
qualidade durante o 40º Fenata. E que, literalmente, resgata Glauber Rocha e a
sua obra, ainda tão pouco estudada e meio que renegada por certos cineastas
pipoqueiros, que querem porque querem transformar a tela do cinema em
televisão.

 

 

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