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Estação Chega de Saudade

Cássio Murilo
Legenda

Nas câmaras do coração um sentimento se instalou. Lembranças de outras épocas, memórias que instigam as imagens antigas a se sobrepor sobre a paisagem. Nos bancos da estação aguardei pelos momentos que, na imaginação, ainda esperam pelo trem. Será que vem? Nostalgia não pede passagem, apenas remete à viagem. Como o viúvo, que há mais de vinte anos, coloca delicadas flores junto ao retrato e reza pela alma de sua amada; apesar da partida, jamais cessou em despedida. Saudade que assumiu compromisso de vida e cinge na lembrança contemplativa.

No final dos anos 50, surgia no Brasil um estilo musical novo, origens no samba com influência do jazz, a bossa nova fazia abre-alas com a canção Chega de Saudade. Passados quase sessenta anos, será que a saudade se extinguiu? O desenvolvimento tecnológico trouxe aparatos e recursos mil em comunicação, velocidade, imagens e telas líquidas de altíssima resolução. Nas mãos da criança disparam em informação. O que vem do passado escoa até nós? Ou, em saltos hightech, pulamos de volta, saudosamente, ao que já passou? A própria tecnologia reacende em digitalização e cores as fotos do nosso legado. Quanta letargia, a parafernália moderna só tem sentido se auxiliar o ser humano a lidar com o seu tempo. Com a mesma fluidez das águas, a emoção da memória vem como rio caudaloso que aflui do passado. A saudade de quem vai, a nostalgia de quem fica, a falta, a perda e a distância, de tanto pesar a alma conforma-se à míngua.

Nas épocas de auge do transporte ferroviário, abrigava a cidade de Ponta Grossa a estação São Paulo – Rio Grande, carinhosamente chamada de Estação Saudade. Na poesia e na música popular, em língua portuguesa, a saudade figura de forma lírica e emblemática. Em poucos idiomas, encontra similar em significado, quase sempre, combalidos pela saudade apaixonada. No embarque e desembarque da estação, primeira classe em arquitetura francesa, movimentava passageiros e cargas, requinte de referência internacional por meio da linha Itararé – Uruguai. Vidas que seguiam em viagem, evoluindo no ritmo das paragens, do trem que apita e convida às novas investidas. Nos trilhos um arquétipo da vida que acorre em rota certa, não desvia e nem se dispersa. O caminho tranquilo e sinuoso, tanto nas curvas alusivas, quanto na imagem metafórica da coluna vertebral, alicerce humano. Sustentação e destino para a vida nas terminações nervosas que irradiam e espargem pelo corpo. Nos pátios do complexo ferroviário de Ponta Grossa trilhos e linhas de trem que irradiavam pela cidade qual organismo que anseia pelo sangue em irrigação.

Veias e artérias que secaram, recolhidas ou afogadas em pedras e asfalfo, piche negro que aplacou os trilhos. Da efervescente vida ferroviária restou a Estação Saudade, os prédios da Estação Arte e da Casa da Memória, isolados, desconectados, como nós. Tanto deslumbramento pela tecnologia, disfarça e realça a saudade que se esvai em despedida. Vontade de fazer morada na Estação Saudade até que o próximo trem aporte em alegria.

 

 

Autora: Renata é escritora, integrante da Academia de Letras dos Campos Gerais, da Academia Ponta-grossense de Letras e Artes e do Centro Cultural Prof. Faris Michaele.

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