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Oralidade em estado puro

Interessante perceber certos movimentos do teatro brasileiro
a partir do que uma mostra nacional como o Fenata proporciona anualmente. Um
desses movimentos é a busca por um teatro que represente uma forma de manifestação
que faz parte da própria evolução do ser humano ao longo dos séculos: a
oralidade. E são muitas as propostas teatrais nesse sentido. Mas quando um
grupo se propõe a representar e, dessa maneira, preservar uma oralidade que
para espanto geral ainda se manifesta na contemporaneidade, e ainda por cima
faz isso de forma extremamente competente, o resultado final fica bem próximo
do sublime.

É o que ocorreu na noite desta quarta-feira (7) com o
espetáculo O Evangelho Segundo Dona Zefa, apresentado no auditório A do
Cine-Teatro Ópera, na mostra competitiva adulta do 40º Fenata. Escrito e
dirigido por Zeca Ligiéro, do Núcleo de Estudos de Performances Afro-Ameríndias
(NEPAA), do Rio de Janeiro (RJ), o espetáculo parte de matéria-prima de
altíssima qualidade: a vida de Dona Zefa, uma escultora e contadora nata de
histórias, ou uma griô, na definição do próprio espetáculo, que vive na
cidade de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha (MG). Bem, ao citar essa região,
não é necessário acrescentar muita coisa, haja vista que se trata de um dos
locais que abrigam algumas das manifestações artísticas mais genuínas do
Brasil, seja em artes plásticas e artesanato, seja em música e teatro.

No palco, a montagem conta com as performances de uma atriz
de múltiplos recursos, Marise Nogueira, e de um casal de músicos – Chico Rota e
Raquel Araújo – que, exatamente em tudo o que fazem, demonstram que a trilha
sonora tem muita, mas muita, pesquisa. Em certos momentos, o espectador é
conduzido atavicamente a um tempo imemorial quando as histórias eram contadas e
recontadas dentro de uma comunidade, em volta do fogo, por pessoas mais velhas,
geralmente marinheiros ou comerciantes, ou mesmo pelos líderes daquele local.
E, depois, sucessivamente, essas histórias eram contadas, e recontadas, e
recontadas… ad infinitum. Tudo guardado na memória, essa preciosidade humana
que resiste ao tempo e está aí, mas nos lembrar que, antes de todas as coisas,
somos seres orais. O tema é recorrente, mas não é possível não se lembrar do
filósofo Walter Benjamin e seu ensaio O narrador: considerações sobre a obra
de Nicolai Leskov, em que ele aponta que a oralidade foi uma das muitas perdas
da humanidade durante a viragem da modernidade sobre a tradição. Dona Zefa,
como mostra o NEPAA, é a prova viva de que essa oralidade ainda resiste.

Uma consideração, no entanto. O Evangelho… não é
espetáculo para palco italiano e com uma plateia imensa (694 lugares) como a do
auditório principal do Ópera. É, sim, espetáculo mais para o intimista, para
ser apresentado ao rés do chão, da terra – até em respeito à Mãe Terra da
Dona Zefa. Isso precisa ser revisto pela organização do festival.

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